Julgo que já se torna repetitiva a forma como começo este segmento semanal: podia-se falar de muita coisa sobre estes tempos complexos que vivemos, mas… [e procedo a abordar um assunto lateral ou mais abstrato]. A verdade é que é que as notícias falam por si, não sei até que ponto faz sentido falar da espuma dos dias com já tantos a fazê-lo. Qualquer leitor fará os seus julgamentos sobre uma notícia e, se sentir alguma humildade intelectual quando pretender tecer julgamentos, procurará mais informação ou autoridades (leia-se especialistas) sobre o tema. Qualquer relevância que posso reivindicar a estas minhas linhas cinge-se ao esforço de trazer outras perspetivas, de preferência, sobre elementos estruturantes, aqueles que podem explicar certas cadeias de eventos, apesar de não os vermos e, eventualmente, diferir algumas notícias por descargo de consciência. Dito isto, hoje venho falar de uma conversa que ouvi num autocarro outro dia:
Estavam 4 idosos sentados nos lugares de prioridade, sendo que duas senhoras falavam entre si e, entretanto, juntou-se um senhor à conversa. Pelo que percebi, nenhum se conhecia. O diálogo que ouvi seguiu moldes semelhantes aos seguintes:
Senhora A – Os vizinhos já não são como antigamente.
Senhora B – Os meus trabalham o dia todo, sou a única reformada no prédio, tenho medo que se morrer, ninguém fará fé.
Senhora A – Tens de andar mais de autocarro, eu ando sempre duas vezes ao dia!
Senhor A – Eu vou ali de autocarro ao Arrábida almoçar e depois trago uma sopa para jantar.
Permitam-me a nota de que não tenho propriamente por hábito coscuvilhar as conversas – apesar de no autocarro serem bastante interessantes -, mas naquele dia íamos como sardinhas e estava ali ao lado. Antes de desenvolver o que quero, note-se o «fará fé»: na altura interpretei como não tendo ninguém para socorrer ou reportar, mas agora julgo que pode haver um sentido um pouco mais profunda: o «fazer fé» como prova de vida, uma testemunha em como aquela pessoa viveu, existiu, um medo da sua existência se esfumar com o desaparecimento corpóreo.
E é justamente por um caminho próximo que quero aqui deixar: a solidão. Afinal, ela afeta-nos a todos, mais cedo ou mais tarde, em várias etapas, pelas mais variadas razões. Talvez a implicação da tecnologia nos levar para um mundo virtual que é, note-se, virtual. Talvez a desconfiança que recebemos do mundo, principalmente pelas notícias, nos leve a afastarmo-nos. Talvez a saúde metal pública não esteja nos seus melhores dias. Circunscrevamo-nos:
E a solidão que os nossos idosos sentem? Será fruto de um idadismo? Não será preciso muito para vermos como a sociedade rotula os reformados de não-úteis (escrevo assim para evidenciar). Na era da produtividade, da novidade, parece que o seu lugar é num lar longe da vista.
Isto deve causar-nos estranheza. Primeiro, porque nós, os cegos de agora, um dia estaremos na mesma posição. Segundo, são os nossos pais e avós. Terceiro, são quem construiu o mundo em que vivemos. Quarto, são os mais prováveis de serem vistos como sábios, pela potencial maior experiência de vida.
Ver os mais idosos como sábios e mestres a ouvir e cuidar é comum em muitas tradições e certamente já o foi na nossa. Principalmente numa economia essencialmente tradicional em que os filhos herdam a profissão dos pais. Hoje as técnicas são desprezadas para um setor primário em que ninguém quer trabalhar. E como pessoas idosas têm mais dificuldade com a atualização das suas técnicas ao meio informático, são vistos como ultrapassados. Permitam-me a ousadia de afirmar que aprender é mais sobre disponibilidade mental do que etapas de vida a isso propícias. Não obstante, se adotarmos essa visão, tenhamos em conta que com a atualização exponencial da tecnologia, nós também seremos os ultrapassados, por muito saber de qualidade que hoje tenhamos.