Dar a volta às contas

As eleições no Reino Unido permitiram-nos assistir na primeira fila às voltas que os analistas fazem. Uma mostra de como o comentariado político recusa qualquer honestidade intelectual. Talvez, assim, ao vermos lá fora, consigamos reconhecer cá dentro esse mesmo mal.

Na quinta-feira já estava decidido quem seria o novo primeiro-ministro, não havia dúvidas. As sondagens à boca das urnas davam uma das maiores vitórias de sempre aos trabalhistas. Com 412 em 650, devem ter um domínio absoluto do voto popular. Errado. O sistema eleitoral britânico é por círculos uninominais, sendo que quem fica à frente é eleito. O Labour teve mais 10p.p. que os conservadores, sendo que estes se ficaram pelos 121. O Reform UK, partido de extrema-direita, teve 14,3% e acabou com 5 deputados.

O problema dos comentadores. Se forem pelos mandatos, vão ter de dar tanta importância aos Verdes como dão ao Reform (algo que não acontece). Se formos pelo voto popular, temos de reconhecer que Starmer teve menos votos que Corbyn tanto em 2017 como em 2019. Os trabalhistas só ganharam porque os conservadores perderam.

Mas houve outras contas a serem viradas do avesso: a segunda volta das eleições legislativas francesas relegou a extrema-direita, que saiu com vantagem da primeira volta, para o terceiro lugar. Este resultado foi conseguido com o acordo de uma frente republicana, segundo a qual candidatos dos campos republicanos, nomeadamente a coligação do presidente ou a de esquerda, em círculos à segunda volta com mais de dois candidatos onde havia extrema-direita, desistiam a favor de outros, tornando a segunda volta polarizada entre a extrema-direita e o outro candidato. Resultou.

Em termos ideológicos aquilo que pode ser inferido é a recusa dos franceses terem um governo autoritário, contrário aos valores da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Essa era a ameaça que pairava numa possível vitória do RN (o partido de extrema-direita que apoia Le Pen). A participação eleitoral é a maior desde 1997, tendo havido maior participação justamente nos locais em que a RN tinha maior força. Para mim, uma das mudanças mais impressionantes foi protagonizada por François Ruffin: no primeiro turno teve 34% por oposição aos 41% da sua adversária (RN), no segundo, com uma participação semelhante, atingiu os 53%. Houve corridas muito mais renhidas. O impressionante é como os dois candidatos disputavam o eleitorado de um terceiro, que desistiu pela frente republicana, tendo Ruffin alterado a sua estratégia de marketing, da noite para o dia, num direcionamento para essa franja. Este parece-me um exemplo a ser estudado.

No final das contas, a coligação de esquerda, a Nova Frente Popular, ganhou estas eleições com uma maioria relativa. Não se pode dizer que houve pouca emoção. Mais: o Ensemble (coligação que está atualmente no governo) conseguiu o segundo lugar. A frente republicana salvou a pele a Macron e abriu as portas à possibilidade de mudança através do programa da NFP. Infelizmente, parece que vai ser muito difícil um entendimento entre a NFP e o ENS para a formação de um governo. Seria um governo constantemente preso, a avançar aos solavancos e sem obra, um presente para a extrema-direita. O que provavelmente acontecerá será uma personalidade do centro-esquerda a ser primeiro-ministro, sendo o governo apoiado pelos ecologistas, socialistas, macronistas e republicanos moderados (o partido “Republicanos”, entenda-se). Assim, não fica o RN sozinho na oposição, mas também a França Insubmissa que, apesar de ser o maior partido da NFP seria o mais difícil de integrar num governo que puxa ao centro, permitindo uma alternativa à esquerda.

Concluo com o que disse a semana passada e que hoje muitos jornalistas e comentadores parecem ainda não ter percebido, adotando cegamente as palavras de Macron: a NFP não é de extrema-esquerda.