Demagogia feita à maneira

Um sistema democrático, pelo menos tendo por base aqueles até agora concretizados, não é perfeito. Qualquer sistema padece dos seus males, o desafio é encontrar um que os minimize. Quando se fala em «aprofundar a democracia» aquilo que se refere é de reduzir os males da democracia, através da expansão dos valores democráticos – daí que se fale de «radicalização» como «ir à raiz». Um dos grandes males da democracia, que sempre existiu, e que parece não haver um antídoto eficiente, é a demagogia. A manipulação é uma técnica importante para a captação de votos, havendo muitos aspirantes ao poder político que afastam os escrúpulos e não têm receios em mentir ou iludir.

Num regime democrático é o povo o decisor, pelo que a comunicação política é dirigida às massas. Não significa, contudo, que uma mensagem ressoa igualmente em todos os seus recetores. Aliás, uma estratégia, atualmente usada e abusada pelo negócio dos dados digitais, é a segmentarização do eleitorado. Trata-se de ter uma mensagem específica para jovens, outra para pensionistas, outra para trabalhadores, cristãos,… A publicidade digital, pelas redes sociais, coloca as pessoas em caixas e expõem-nas à mensagem respetiva. Isto, claro, não é necessariamente demagogia, não obstante é um instrumento muito utilizado por conseguir colocar uma mensagem cirúrgica num local em que será provavelmente bem recebida, sem haver o olhar crítico de alguém que, por ter uma experiência diferente, possa ter e reconhecer nessa mensagem possíveis falhas. Ou seja, este tipo de comunicação apela à adesão instantânea, sem lugar para o pensamento.

Pois bem, escolher um público-alvo. A classe mais apontada é a classe média: são as pessoas que têm uma bolsa de ar – mesmo que ligeira. Se formos ver, percebemos que a abstenção é maior entre aqueles economicamente mais desfavorecidos e as classes altas são muito pouco numerosas. É a classe média aquela que tem moldado as grandes mudanças de sistema. O que sente a classe média atualmente (e quase sempre)? Que está asfixiada por impostos, que nada recebe, que é o motor da sociedade, que não tem visibilidade,… Todos estes sentimentos são sintomas do sistema capitalista em que vivemos, todos são propícios a serem instrumentalizado.

Suponhamos, num caso meramente hipotético, que existe uma proposta para que as crianças com pais trabalhadores tenham prioridade no acesso às creches, em relação àquelas cujos pais estão desempregados. Esta proposta tem a aparência perfeita! Valoriza quem trabalha (apesar de não considerar o trabalho doméstico, nem especificar a aplicação do critério), «coloca os subsidiodependentes no seu sítio» (apesar da maior parte do subsídios irem para os 20% mais ricos… [1] [2]), fala dos filhos (apesar de ser sobre os pais),… No fundo, é lobo em pele de cordeiro por de uma forma aparentemente lógica, levar a uma resolução inconstitucional e gerar divisão – quando as pessoas estão umas contra as outras, é mais fácil de radicalizar pela força do ódio. O mais triste nesta situação é fazer com que as crianças sejam discriminadas com base nos pais, levando a um ataque direto à igualdade de oportunidades. É inadmissível a hipoteca do futuro. É instrumentalizar crianças. Há 28 deputados que deviam ter vergonha.

Demagogia feita à maneira é como queijo numa ratoeira – canta Lena D’Água.

[1] https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/society-at-a-glance-2019_soc_glance-2019-en

[2] Só um quarto da população portuguesa tem um rendimento por pessoa no agregado de mais do que 2000€ por mês.