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Nascer cansado

Na sexta-feira passada fui a uma loja comprar um relógio. Ao meu lado estava uma senhora idosa que olhou para a funcionária e exclamou: estou cansada! Logo a seguir acrescentou: mas alguns novos também já nascem cansados! Claramente tinha de responder, virei-me a concordar: eu posso testemunhar! Ficámos, então, a falar dos seus netos, um dos quais está a estudar na mesma faculdade que eu tinha e nesse mesmo dia teve uma frequência. O problema? Nem a senhora, nem eu estávamos a gozar. Este é um mundo que, mais do que ser ele próprio exaustivo, foi feito para nos esgotar.

Em casa, já depois desse episódio, fiquei a pensar no assunto e relacionei-o com aquilo que senti a minha semana toda: uma preguiça imensa. Digo preguiça e não cansaço, porque, por algum motivo, faltava motivação. Estou a fazer aquilo que gosto, estudar, sendo um trabalho muito especial, porque é flexível e com responsabilidades muito mais abstratas, apesar de existentes, do que a de um trabalhador. É por esta flexibilidade, aliada ao poderio da juventude, que estes anos são considerados os melhores das nossas vidas. Então como é que nos melhores anos das nossas vidas nos sentamos no sofá, pomo-nos a lamentar e a tentar entrar numa realidade paralela através de livros, séries e filmes, esquecendo a nossa própria existência (salvaguardando, talvez, somente as emoções)? Em primeiro lugar, o nosso privilégio. Tivéssemos nascido noutro local e nem sonharíamos com esta possibilidade. Mas isto é claramente um cansaço para com a nossa vida que é extremamente preocupante. Em jovens entre 15 e 34 anos, o suicídio é a segunda causa de morte, tanto em Portugal, como na Europa. Em média, a cada dia que passa 3 pessoas decidem por termo à sua vida em Portugal. Estes são dados que a Ordem dos Psicólogos lançou em 2021 e que são o exponente máximo daquilo que vos trago.

De onde vem este cansaço e como será possível nascer assim? Vivemos num mundo que pega nas pessoas e os mergulha em trabalho. Mergulha em publicidade. Mergulha em valores autodestrutivos, como a competitividade. O nosso sistema tem como propósito produzir riqueza para a acumular e não para distribuir. Agora, desde que nascemos, colocam-nos na cabeça a necessidade de nos vendermos das mais variadas formas se quisermos alimentar a nossa família.

Mais do que tudo, sentimos a necessidade de vender o nosso tempo. Horas extraordinárias se não forem feitas é porque os trabalhadores são preguiçosos. Mesmo nos casos mais flagrantes a comunidade mostra-se o pior dos inimigos quando olha de lados os médicos do SNS, quando muitas vezes estes quase que abdicam da sua vida privada para manter um direito humano funcional. A forma como nos enterraram estas noções fazem-nos olhar de lado para aqueles que são nossos irmãos. Somos educados a duvidar de toda a gente, porque todos são potenciais concorrentes, neste sistema onde a competitividade, uma suposta meritocracia, impera. A produtividade tornou-se um mantra e um perseguidor.

E mesmo quando temos algum tempo para nós, aquilo que nos ensinam é para arranjarmos um passatempo. Leitores e leitoras, a língua importa: dizermos passatempos e não aproveita-tempos ou hora-de-prazer não será por acaso. Algo está muito errado quando sortudos seres dotados de vida como nós, querem simplesmente deixar o tempo correr, sem o aproveitar.

Tendo abordado questões relacionadas com suicídio considero importante aqui deixar o conselho que se condira mais importante: pedir ajuda. Linhas como o 112 ou 808 24 24 24 (linha do SNS) dão apoio. Todas as vidas são preciosas.