Uma dimensão paralela que nos constrói

É domingo de manhã, véspera de São João, tenho de despachar algum estudo, para não atrasar. Naturalmente, acabo a ver um documentário sobre a biodiversidade num dos nossos canais generalistas. Percebo que é realmente disso que preciso, então passei pelos canais de documentários à procura do que existia. Confirmo aquilo que já havia pressuposto. Então decidi escrever este texto para abordar um assunto que me parece importantíssimo: as alterações que se deram nas nossas televisões, mais precisamente, na programação dos canais, e como isso revela alguns dos nossos problemas.

Para começar, importa esclarecer a importância da televisão: na psicologia social avolumam-se os estudos sobre a influência que os media desempenham nas nossas atitudes e comportamento. Desde as teorias sobre a agenda pública ser definida pelos media [1], a sua importância na socialização [2] e o conformismo que geram [3]. Apesar de hoje falarmos muito das redes sociais e, em geral, do meio virtual, a verdade é que a televisão continua a ser um meio muito visto [4] – além de que muito do seu conteúdo acaba por ser acedido nos meios online.

Desde logo, começo pela questão que me moveu hoje: o conteúdo dos canais de documentários. Lembro-me, quando era criança – o que não foi há mais de uma década, de passar por esses canais e ver muitos programas que davam a conhecer a natureza, o universo e a História. Havia imagens, um narrador e especialistas convidados. Havia programas mais superficiais e informais, outros num registo mais rigoroso. Mesmo com muita informação a passar ou lado ou sendo esquecida quase de imediato, ficava maravilhado. Ao longo do tempo esses programas foram sendo substituídos por reality shows, onde parca informação se pode retirar. Nesses canais, só ocasionalmente passa um bom documentário, atualmente, os melhores até podem ser especulação sobre OVNIS. Felizmente, a RTP Play é um excelente arquivo público e gratuito de documentários (além de séries e filmes) [5].

Sobre os reality shows que abundam hoje, Rutger Bregman, em Humanidade, afirma «tome algum tempo para ver os bastidores dos programas e verá candidatos a serem conduzidos e jogados uns contra os outros de formas chocantes», apresentado vários exemplos e fontes. Aquilo que vemos como realidade é manipulação.

Trata-se da busca pelo sensacionalismo, aquilo que enche o olho. Bregman diz-nos «as notícias, segundo várias dezenas de estudos, são um perigo para a saúde mental». Elas versam o excecional, que nós tomamos como quotidiano. «O fascínio pelo apocalipse domina o panorama político, estético e científico. É uma nova ideologia dominante que é necessário isolar e analisar antes que, como um vírus, se apodere do âmago das nossas mentes», escreve Marina Garcés no Novo Iluminismo Radical. Os canais de informação impõem-nos um mundo que não é o nosso ao mesmo tempo que o constroem.

Esta nossa sensação de impotência é potenciada pela neutralização da nossa crítica, do nosso questionamento. Vejamos os canais juvenis (não infantis): as séries com atores deram lugar a desenhos animais, ainda por cima, sem conteúdo. Há uma infantilização em curso, que faz ecoar a Máquina do Tempo de H. G. Wells. 

Enquanto isso, um leão marinho brinca com um pedaço de lixo nas Galápagos.

[1] Veja-se a teoria do agenda setting de McCombs e Shaw. Deixo aqui um conjunto de estudos de um laboratório poru«tuguês com muitos recursos interessantíssimos: https://labcomca.ubi.pt/estudos-do-agendamento-teoria-desenvolvimentos-e-desafios-50-anos-depois/

[2] Veja-se a teoria do cultivo de Gerbner.

[3] Veja-se a teoria da espiral do silêncio de Noelle-Neuman.

[4] https://www.marktest.com/wap/a/n/id~2aac.aspx Para um maior aprofundamento: https://gulbenkian.pt/publications/inquerito-as-praticas-culturais-dos-portugueses/

[5] https://www.rtp.pt/play/