A normalização da selvajaria

As nossas circunstâncias parecem estar a mudar. Talvez não seja num rompimento, mas antes numa transformação gradual que tem na atualidade uma expressão que começa a ganhar visibilidade. A deterioração dos valores de abril parece evidente, sendo que me parece ingénuo afirmar que esse processo é especificamente deste tempo e não uma questão estrutural, cultural. A hegemonia cultural hoje, aliás, é da normalização do ódio. E da selvajaria.

Recordo que num artigo anterior já escrevi sobre a utilização de crianças, filhos de políticos, como arma política [1]. Intuitivamente, por bom senso, seria impensável num debate este assunto ser levantado ou ter qualquer relevo. O respeito pela vida privada e pela integridade do outro, neste caso acentuado por ser relativo a pessoas estranhas à atividade política, tem de ser um princípio na arena política. Se hoje é possível este debate rasteiro, é porque se normalizou a selvajaria.

Basta ir às redes sociais para perceber esta banalização da barbaridade. Existe um completo atropelamento ao outro a partir do momento que discorda da opinião, ou até, e aqui entra no ódio, integra uma comunidade considerada intrinsecamente inferior. Não são raras as ameaças à integridade física que se leem nesses espaços. Isto não pode ser visto como normal.

Este discurso de ódio [2], em específico, tem levado a um aumento nos crimes de ódio [3], esta correlação já tem vindo a ser estudada há anos [4]. Trata-se de uma hegemonia cultural do ódio que custa vidas. Infelizmente, ao que tudo parece indicar, os Açores foram palco de um desses hediondos crimes [5]. Quando se dá margem a discursos discriminatórios, segregadores e violentes, é impossível achar-se que é inconsequente. Infelizmente está bem à vista. Está agora a ser lançado um livro de um investigador português, Vicente Valentim, justamente sobre esta normalização [6].

Neste contexto, é imperativo agir. Não basta colocarmo-nos à margem, mas intervir. Não necessariamente ir para a rua marchar, mas consciencializar quem tem esse discurso à nossa volta que, além de intrinsecamente errado, tem consequências terríveis para vidas.

É necessário criar a empatia pelo outro, mesmo que não o conheçamos. Por isso também é importante o que acontece à volta do mundo. Há uns dias deparei-me com uma notícia [7] sobre declarações da UNICEF a afirmar que as crianças em Gaza nem têm «energia para chorar». Quando algo não nos afeta, é fácil fechar os olhos e deixar andar. 

Acabo com esta citação, tão conhecida, proferida por um pastor luterano na sequência do holocausto:

«Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado — porque não era socialista.

Então, vieram buscar os sindicalistas, e eu fiquei calado — porque não era sindicalista.

Em seguida, vieram buscar os judeus, e eu fiquei calado — porque não era judeu.

Foi então que eles me vieram buscar, e já não havia mais ninguém para me defender.»

(Martin Niemöller)

[1] https://sites.google.com/view/pedrogasparamaral/colabora%C3%A7%C3%B5es/d...

[2] https://www.publico.pt/multimedia/interactivo/discurso-de-odio

[3] https://expresso.pt/sociedade/2024-02-09-Crimes-de-odio-em-Portugal-subiram-38-em-2023-9bab2866

[4] https://www.nyu.edu/about/news-publications/news/2019/june/hate-speech-on-twitter-predicts-frequency-of-real-life-hate-crim.html

[5] https://www.acorianooriental.pt/noticia/mais-de-uma-centena-de-pessoas-em-manifestacao-antirracista-nos-acores-358599

[6] https://www.vicentevalentim.com/book-project.

[7] https://rr.sapo.pt/noticia/mundo/2024/03/17/mais-de-13-mil-criancas-ja-morreram-em-gaza-denuncia-unicef/371105/