Assumimos – hoje, aqui, como no passado o temos feito, de forma reiterada - que uma das maiores conquistas da Democracia foi o Serviço Nacional de Saúde. Ao lado da Autonomia, a implementação do Serviço Regional de Saúde, nos Açores, é um bem precioso da Democracia e uma mais-valia para todos/as os/as Açorianos/as.
Em conformidade, queremos afirmar, sem tibiezas, que o Serviço Regional de Saúde é bom.
Pese embora os seus problemas e deficiências que, reconhecidamente, possui, é um bem insubstituível para a Região.
Melhorá-lo – utilizando, para isso, o conhecimento adquirido ao longo dos anos, a evolução tecnológica e a experiência dos profissionais do sector - é condição básica para a sobrevivência e dinamização deste e de qualquer outro sistema.
Racionalizá-lo - com base nos pressupostos anteriores e tendo sempre as pessoas, como o seu alfa e ómega (particularmente, em matéria tão sensível como a Saúde) - é o único desiderato plausível.
A importância, a complexidade, a premência e, sobretudo, a sensibilidade deste tema, exigiria da parte do Governo Regional um outro tipo de abordagem, a começar, desde logo, pelo envolvimento de profissionais e populações, na pretendida reestruturação deste Serviço.
Mas o Governo optou por um arremedo de processo participado, mais como um expediente de propaganda do que para a efectiva construção de um processo de auscultação genuíno e aglutinador de vontades e de propostas.
O resultado está à vista: - populações e seus órgãos representativos, profissionais da Saúde e respectivas entidades, partidos políticos, incluindo o próprio Partido Socialista (ainda que fora do Governo e da bancada parlamentar), todos estão contra a proposta de reestruturação da Saúde, apresentada pela tutela.
Ou seja, a unidade máxima contra o documento do Governo Regional foi totalmente alcançada.
A proposta do Bloco de Esquerda de um Orçamento de Base Zero para a Saúde tinha, à partida, três pressupostos fundamentais:
1º. - Discutir o Serviço Regional de Saúde, a partir das reais necessidades das populações, elaborando diagnósticos e encontrando respostas, com o apoio e a intervenção empenhada de profissionais e principais destinatários;
2º. - Racionalizar as soluções, com base nos compromissos inerentes à nossa realidade arquipelágica e demográfica, partindo de uma política de segurança e de proximidade, o mais alargada possível e, sobretudo, compaginável com a informação científica adequada;
3º. – Recusar, liminarmente, discutir a reestruturação do Serviço Regional de Saúde, com o lastro da dívida do sector a condicionar, de forma determinante, as futuras políticas.
Todavia, este não foi o caminho seguido pelo Governo Regional, apesar dos anúncios e dos compromissos assumidos, em contrário. Porventura, o caminho proposto pelo Bloco de Esquerda encetava um processo mais demorado mas, certamente, mais participado, mais perto das necessidades dos/as Açorianos/as e, seguramente, mais consensualizado - factor indispensável, quando se trata de decidir sobre o acesso das pessoas a um direito inalienável: a Saúde.
Hoje, está também na hora do Partido Socialista (e seus sucessivos governos) assumirem as responsabilidades que decorrem dos erros políticos cometidos nesta área, a começar pela constante desorçamentação do Serviço Regional de Saúde – responsável, aliás, pela dívida gigante que este apresenta, a somar ainda às rendas da Parceria Púlico-Privada do Hospital da Terceira.
Não esqueçamos que o governo de António Guterres limpou, à altura, toda a dívida do Serviço Regional de Saúde.
Mas os governos regionais do Partido Socialista, para esconderem a suborçamentação do sector, seguiram o mau exemplo da República, ao importarem a figura dos hospitais-empresa e ao criarem a Saudaçor. Estas medidas mais não visaram do que esconder a dívida, colocar os hospitais de costas voltadas uns para os outros e criar competição, onde deveria existir complementaridade.
O resultado aí está. Não pode, agora, o Governo do Partido Socialista querer fazer as populações pagarem o preço das opções de secretismo, de falta de transparência e de suborçamentação do sector.
Neste particular, faço uma sugestão ao Governo Regional, usando uma fórmula, tão do agrado do Partido Socialista dos Açores: - copiem o exemplo do governo Sócrates, que tratou de arranjar veículos para a gestão dos produtos financeiros tóxicos, na nacionalização do BPN. No caso vertente, o Governo Regional concretizaria um veículo para a gestão da dívida do Serviço Regional de Saúde. Por que não?
É, também, patente, no documento apresentado pelo Governo Regional que a política de proximidade e segurança das populações é substituída pela vertigem da mobilidade, chamemos-lhe assim.
O problema, consensualmente considerado, como a maior pecha do Serviço Regional de Saúde é a falta de médicos de família, calculada em cerca de 45 a 50 médicos, em particular nas ilhas mais populosas.
Sobre este assunto, o documento nada diz, nem identifica uma única medida para colmatar esta grave falha. Aponta para o ano da graça de 2016, com base numa crença do Senhor Secretário Regional da Saúde de que, como vão existir médicos a mais, no País, eles acabarão por cair de maduros, nos Açores.
Senhor Secretário Regional, esta sua crença, nem serve as populações, nem resolve o referido problema. Pelo contrário, tendo em conta as notícias vindas a público da crescente atracção de médicos portugueses pelos convites para países, como o Brasil e outros europeus, talvez essa crença não passe, afinal, de uma forma de iludir as populações.
Certo é que um documento com as pretensões deste, que não equaciona o principal problema do nosso Serviço Regional de Saúde e, menos ainda, propõe medidas de combate para o mesmo, começa logo por ser um documento falhado.
Mas a saúde de proximidade, nas intenções do Governo Regional, leva mais uma machada, quando se trata do fecho das urgências dos centros de saúde, à noite. Vejamos, por exemplo, o caso da Vila do Nordeste.
A urgência noturna é fechada, pois está a menos de 60 minutos da urgência hospitalar. A pergunta que se coloca é a seguinte: as viaturas de Suporte Imediato de Vida (SIV) vão estar, todos os dias, no Nordeste, ou estarão sedeadas em Ponta Delgada ou na Ribeira Grande? É que, se for assim, já não estamos a falar de 60 minutos.
Sem mais delongas e evitando falar de desenvolvimento harmonioso, coesão territorial, descentralização de serviços, desertificação humana e outros ítens importantes, o caso concreto do Nordeste, em S. Miguel, é um exemplo (entre outros) que põe bem em evidência o quanto este documento foi feito em cima do joelho.
E, ainda, nas questões de proximidade, o documento do Governo atinge um dos seus picos de desconchavo, quando, no que respeita às deslocações de especialistas aos centros de saúde e às ilhas sem hospital, não tem uma posição clara, ficando mais uma vez na ambiguidade para, mais tarde, regulamentar.
E, atenção, porque, na linha dominante deste documento, a tradução desta ambiguidade significa mais cortes, por um lado, e mais viagens para os doentes, por outro.
Mas o desnorte continua, também, no que toca aos hospitais. Faial e Terceira perdem valências, querendo isto dizer mais viagens para os doentes e respectivas famílias. Peguemos num exemplo avançado por um médico e que é totalmente arrasador para com as pretensões do Governo Regional: - o fecho dos cuidados intensivos no Hospital da Horta.
O estudo deste médico demonstra, de forma exaustiva, quão errada é esta medida; em primeiro lugar, porque a qualidade do serviço (qualidade auditada pela Ordem dos Médicos) e o grau de satisfação das pessoas é notória; em segundo lugar, porque a proximidade do serviço, bem como da família, para quem está vulnerável e necessita de ser socorrido, está assegurada; em terceiro lugar, porque os custos sobem em flecha, com a transferência, para o Hospital da Terceira, dos referidos cuidados intensivos.
E aqui está mais um exemplo da incompetência deste documento.
Mas as contradições, equívocos e ambiguidades não se ficam por aqui, sendo antes a ossatura da proposta do Governo Regional.
Anunciou o Governo uma revolução, nos transportes marítimos para as ilhas do Triângulo. Não será elementar exigir que um documento, com o alcance que este pretende ter, reflicta as implicações que esta anunciada revolução, inevitavelmente, terão, em matéria infraestrutural, nas políticas de saúde?
Aparentemente, aqui não se aplica a vertigem da mobilidade, talvez porque o Senhor Secretário Regional não seja fã da sua vertente aquática ou, então, porque a lógica centralista é o denominador comum que sufoca todo o pensamento.
Na Terceira, é consensual, entre utentes e profissionais, o excelente serviço que o Centro Oncológico dos Açores (COA) presta. Ora, então, se funciona bem, não pode continuar e, portanto, transfere-se a maior parte das suas valências, de imediato. Eis um bom exemplo de lógica burocrática, segundo a qual as pessoas, a sua segurança e confiança não são factores essenciais, no que à Saúde diz respeito.
Estamos, pois, perante propostas que afastam as pessoas do acesso à saúde, mas cujo afastamento dificilmente se traduzirá em poupanças financeiras, para o erário público. Contraditoriamente, serão antes uma sobrecarga para os/as Açorianos/as, no que às despesas com a Saúde diz respeito.
Mas este documento vai mais longe, nas suas contradições e no objectivo que persegue, isto é, a sustentabilidade financeira do Serviço Regional de Saúde.
É assunção generalizada e relevada por diversos profissionais (e não só) que um dos sorvedouros de dinheiro do Serviço Regional de Saúde é a saga dos meios complementares de diagnóstico.
São conhecidos os ‘mega-armazéns’ dos chamados “exames” que ninguém reclama ou os exames em duplicado e triplicado, feitos aos utentes do Serviço Regional de Saúde.
Contudo, nesta vertente, as propostas do governo são pacatas, nada de vertigens. Limita-se a anunciar, timidamente, que baixará os preços das convenções; medidas de fundo, essas, só lá para o ano de 2015. Se tivermos em conta os anos de demora pela famigerada informatização do Serviço Regional de Saúde, é caso para dizer que bem podemos esperar sentados/as.
É claro que, aqui, o problema não é o utente, não são as pessoas; aqui, impera uma clientela lobista, que foi habituada a rendas e que interessa ao poder manter do seu lado.
É nesta lógica que se insere a mal disfarçada Parceira Público-Privada da Radioterapia, a tal que o próprio Tribunal de Contas - para além de outros factores que levaram ao seu chumbo inicial -questionou o próprio interesse, para a boa gestão dos dinheiros públicos
Este é outro exemplo de dois pesos e duas medidas. Aqui, a pressa da sustentabilidade tem limites.
Concluindo este ângulo de análise, consideramos, sem margem para dúvidas – e, nesta conclusão, estamos em consonância com a esmagadora maioria das entidades e opiniões individuais, até hoje, expressas - que a linha deste documento:
- Afasta as pessoas dos cuidados de saúde
- Torna a saúde mais cara para os utentes
- Desumaniza, ainda mais, os cuidados de saúde
- Obriga as pessoas a mais deslocações, dentro da ilha e inter-ilhas, com todo o peso, em múltiplas e díspares dimensões, que isso acarreta.
É, pois, um mau caminho.
E, se as medidas parcelares são más, a arquitectura apontada para o Serviço Regional de Saúde é de um centralismo terrível.
O Bloco de Esquerda é defensor de uma estratégia única para o Serviço Regional de Saúde e que essa estratégia seja monitorizada, centralmente, por um órgão próprio, com um único orçamento e que contratualize, por exemplo, com os três hospitais, contratos-programa – ou seja, aquilo a que poderemos chamar ‘gestão estratégica’. Esse orçamento deverá ter, por base, os referidos contratos-programa, subdividido pelos três hospitais, sendo a gestão operacional da responsabilidade de cada um dos hospitais.
Pensamos que um modelo deste tipo permitirá a decisão de proximidade e a flexibilidade necessária, para responder a situações diferentes, sem perder a fundamental estratégia comum.
Em Saúde - como no resto da vida pública -, está provado que o caminho não é o centralismo.
Mas também aqui, porque não parar para ouvir quem conhece o terreno?
Cada vez mais vozes apontam para um modelo descentralizado, assente nos três hospitais, em articulação com as Unidades de Saúde de Ilha. Este modelo - que nos parece interessante de explorar - não colide com uma estratégia única e pode potenciar decisões de proximidade, mais adequadas às necessidades das populações abrangidas.
Ora, um comando único que decide tudo é, completamente, o sinal contrário de poupança e de ter as pessoas no centro do Serviço Regional de Saúde.
E já nem vale a pena falar da macro-estrutura confusa, ambígua, volumosa e contraditória que é ter a Saudaçor, a Direcção Regional de Saúde, a Comissão de Coordenação do Serviço Regional de Saúde e ainda um Secretário Regional…com gosto pelas velocidades.
Mas, neste esquema, importa perguntar: - porque razão tem o Governo Regional uma aversão tão emblemática às Unidades de Saúde Familiar? Poderá ser porque elas consagram elementos de proximidade e de descentralização que ferem a lógica controleira do Governo?
Nesta súmula, inevitavelmente incompleta, tentei demonstrar porque o documento, em análise, não responde aos problemas (antes, agrava-os), a sua filosofia está errada e, a ser implementado, é prejudicial aos/às Açorianos/as.
Também, grave, é o facto de, neste momento, não haver nada de concreto sobre uma questão tão importante como a Saúde Mental. Nesta área - onde, cada vez maior número de pessoas exigem cuidados -, a falta, neste documento, de linhas orientadoras, é mais um sintoma da sua incompletude e da sua incompetência. E o mesmo poderemos dizer, por exemplo, da saúde oral, visual ou auditiva (entre outras), que o documento, pura e simplesmente, ignora.
A bem da defesa do Serviço Regional de Saúde, este documento só tem um caminho: ser lançado no rol das inutilidades. O outro caminho que, em nossa opinião, o Governo Regional deve seguir (e pensamos não estar sozinhos) é lançar um verdadeiro processo de auscultação, em cooperação com quem sabe do assunto, com quem trabalha no Serviço Regional de Saúde, com as populações e com as diferentes forças políticas.