…”Mas no que toca aos clientes, às leis e aos regulamentos, muito do que Keil do Amaral escreveu aplica-se que nem uma luva à contemporaneidade portuguesa, o que leva a concluir que certas características culturais subjacentes são de longa duração.”…
Michel Toussaint, arquitecto, in “Reler as maleitas da arquitectura nacional”, Jornal Arquitectos nº 199.
Michel Toussain relia há dez anos atrás os textos de Keil do Amaral, datados de 1948 (!), considerando-os como actuais nas apreciações que então continham sobre a arquitectura nacional, neste caso particular nas relações entre cliente, leis e regulamentos.
Hoje volvidos dez anos, sobre o texto de Michel Toussaint e sessenta e cinco sobre o de Keil do Amaral, a promulgação da recente legislação relativa ao código da contratação pública, no meu entender, só agravou uma das maleitas diagnosticadas por Keil em 1948.
Se nos idos anos 70 do século passado, mais precisamente em 1972, a promulgação, ainda que a “título provisório” (sabe-se lá porquê!), da Portaria relativa às “Instruções para o cálculo de honorários” de Projectos de Obras Públicas, regularizava os valores de mercado dos projectos, determinando aquele cálculo em função do valor e tipo de obra, o actual código que apenas entende como bom o valor mais baixo, desregulou todo o mercado.
Sinais dos tempos!
Não tenhamos dúvidas que a legislação, por oficial, influencia mesmo os contratos por ela não abrangidos.
E se em 1972, aquela legislação relativa à obra pública passou também a influenciar as relações com clientes particulares, regularizando o mercado, a actual pela mesma razão, ao influenciar de igual modo as relações não oficiais destrambelhou-o.
Em 1972, aquela legislação tinha o mérito de à partida cliente e projectista saberem desde logo os valores relativos a cada projecto, permitindo no campo dos honorários para além de um planeamento financeiro adequado, um relacionamento civilizado entre as partes.
A actual legislação que abandonou por completo qualquer bitola para o cálculo de honorários e que coloca no mesmo saco a brita e as ideias, que promove apenas o “valor mais baixo”, deixa a todos a dúvida do valor razoável, do valor devido, deixando de haver qualquer valor de referência.
Passámos todos a desconfiar…
Eliminadora de outros valores de avaliação para efeito de concursos públicos, esta actual legislação remete unicamente a razão de adjudicação ao valor mais baixo, considerando ainda que só são entendidos como “anormalmente baixos”, aqueles que estejam 40% abaixo do valor base tabelado pelo dono de obra, fazendo com que deste modo todos os concorrentes se coloquem sobre aquele valor limite, sob pena de se não o fizerem, serem preteridos.
Ora se o valor base em principio é o considerado como razoável e consentâneo para aquele projecto ou para aquela obra, um valor de 40% mais baixo não permitirá a sua adequada execução, ou terá aquela prestação um prejuízo daquela monta.
E esta doutrina contamina todo o quadro geral da elaboração de projectos e obras desqualificando-os, como vamos sabendo através das notícias de projectos mal feitos, repercutidos em equipamentos com mau funcionamento ou conducentes a obras com derrapagens acima dos valores admissíveis, ou de obras pura e simplesmente mal executadas; no fundo todos afectados pelos valores irrisórios apresentados no concurso e pela respectiva acomodação em obra ao seu real valor.
A este respeito relembro o conhecido ditado:
“O que é barato sai caro, e o que é bom custa dinheiro”.
E assim se geram valores de deterioração do mercado em abono de falsas economias.
E se os projectistas muito dificilmente reúnem condições para em obra vir resgatar aqueles 40% que lhes eram devidos, ou não reúnem mesmo de todo; resta-lhes baixar a qualidade do projecto, como forma de minorar os danos.
“Mal pago, mal estudado”, como escrevia Keil do Amaral, denotando a falta de investigação na preparação dos trabalhos ou a enorme quantidade de encomendas aceites em simultâneo para ultrapassar o baixo nível de honorários.
Para os empreiteiros com outra escala de valores, municiados por uma cartucheira de advogados, parece mais fácil aquele resgate, beneficiando ou de um mal preparado projecto, ou propondo alterações de materiais, ou sugerindo “já agora’s”, ou beneficiando de alterações de circunstância decorrentes do lapso de tempo ocorrido entre o projecto e a obra por exemplo, ou vasculhando…
Porque apesar destas supostas restrições de custo, como sempre, determinado artigo abre a porta, ou escancara-a, consoante os ventos que sopram, normalmente devidamente encanados, e até aos 50% a derrapagem legal faz-se a favor do vento.
A crise veio agudizar a desconfiança que aqui anteriormente referi, e que paira sobre uns e outros, todos a quererem safar-se enganando o próximo.
A simples decomposição dos valores apresentados a concurso e publicitados porque públicos, demonstra a impossibilidade de realização de um projecto ou de uma obra em condições, bastando fazer contas, mas a legislação não o permite, e ficamos muito satisfeitos com adjudicações a preço de saldo, esquecendo ou empurrando para a frente os reais resultados deste destrambelhamento, repercutido no constante esbanjamento de dinheiros públicos.
Sendo o Projecto sob o ponto de vista dos honorários, o parente pobre do sistema de edificação, sabendo que os danos causados por um mau projecto são quase sempre ou mesmo sempre superiores aos honorários cobrados, não se consegue entender que em abono de falsas economias, se hipotequem equipamentos, a Cidade e o erário público.
A moralização do sistema passa à partida, pelo princípio da rectificação do tal “anormalmente baixo”, capaz de repor o justo preço de projectos e obras, eliminando necessidades imperiosas de resgate de valores apresentados a concurso na sua acomodação ao seu real valor.
Aqui e no tocante aos projectos uma nova tabela reporia também valores éticos, hoje tão esquecidos.
Em segundo lugar passa pela verificação de qualidade dos projectos adjudicados, causadora de alergia aos projectistas, mas capaz de rectificar aqueles antes da fase de concurso de obra, dotando-os da qualidade necessária ao desaparecimento de sugestões oportunas à boa derrapagem.
Em terceiro lugar passa pela redução dos valores que configuram as derrapagens, os”já agora’s”e os erros e omissões de projecto, estes numa redundância à exigência de qualidade de projecto.
E então sim, poderemos, se quisermos, começar a remar contra a maré, e eliminando características culturais subjacentes ao processo, responsabilizar os vários intervenientes por qualquer deslize!
Até lá, convenientemente manteremos o regabofe!