Arquitectura XXIII

…”Não será de excluir a hipótese de que a nossa proverbial capacidade de improvisar (o desenrascanço) seja devida menos a um défice de organização – que é real – do que a uma estratégia do Poder, que quer ter as mãos livres para decidir ao sabor das conveniências e das oportunidades.”…

Manuel Tainha, arquitecto in Prefácio de “Arquitectura assim ou ao contrário?” de José Charters Monteiro.

 

Mãos livres para decidir ao sabor das conveniências e das oportunidades em planeamento urbano em particular, ou planeamento territorial em geral, significa negligenciar os Planos de Ordenamento, seja ele qual for o seu objecto e a sua escala, razão porque desde há tempos já ninguém os quer.

A pouco e pouco fomos percebendo o entrave que constituíam às oportunidades que, em abono do “progresso e do investimento”, se abriam à boa e conveniente especulação imobiliária e a toda a teia de interesses em seu redor, e por isso ou se abandonaram, ou se revêem no sentido do alargar das oportunidades, sobre todo e qualquer palmo de terra independentemente da sua vocação.

E qualquer revisão de Plano obedeceu sempre à densificação dos índices de construção e à diminuição da Reserva Agrícola, antes ainda de se entrar também na Reserva Ecológica, como agora já se adivinha, ou mesmo constata.

Refiro-me em particular àqueles que por exigência legislativa ainda vigoram, aos Planos Directores Municipais, porque os restantes ou já caíram ou estão em vias disso.

Mas precursores com o Plano do Marquês de Pombal para a Baixa, tivemos sempre que quisemos, bons exemplos de planeamento urbano, como os Planos de Duarte Pacheco, ou os do Gabinete de Urbanização Colonial, ou mais recentemente os Planos de Olivais e Chelas, ou mesmo o da Expo 98, todos correspondentes a momentos chave.

No entretanto não queremos saber; vasculham-se as oportunidades, está-nos no sangue!

 

Na Região, e para Ponta Delgada em particular, o primeiro Plano surge em 1946, na época de Duarte Pacheco, seguem-se-lhe a sua revisão em 1963, o Plano para o Distrito em 1973 que abrangia toda a ilha de S. Miguel, outro Plano de Urbanização em 1978, o Plano Viário em 1982 e novo Plano de Urbanização em 1990.

 

De uns e outros, todos de curta vigência, e não foram poucos como se vê, pouco se seguiu, umas ideias aqui outras acolá, das quais realçaria o traçado da circular a Ponta Delgada, saído do Plano Viário de1982, que a actual via rápida seguiu, e que se me afigura de todas a mais consistente.

 

Somos avessos à regra; críticos ao que nestes termos se herda e como se lhe dá continuidade; estamos sempre a começar de novo, o que os vindouros porão em causa; e assim se mostram hipotéticas e diferentes vontades de planeamento, logo retraídas para dar lugar a outras conveniências a outras vontades.

 

A criação da Secretaria Regional do Ambiente, que entretanto foi tendo outras denominações, promovida por legítimas preocupações ambientais, ditou a feitura de toda uma série de Estudos Ambientais reflectidos também em Planos, os Planos de Ordenamento da Orla Costeira de todas as ilhas do arquipélago, o Plano Regional de Ordenamento do Território dos Açores, os Planos de Ordenamento das Bacias Hidrográficas das Lagoas das Sete Cidades e das Furnas, o Plano Sectorial da Rede Natura 2000, o Plano de Ordenamento da Paisagem Protegida de Interesse Regional da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, que ao contrário do faz e põe de lado logo de seguida, dos Planos Directores Municipais, dos Planos de Urbanização, ou dos poucos Planos de Pormenor, vêem reflectindo os objectivos da sua realização, marcando de um modo geral positivamente o território.

 

Recentes notícias levam a crer que está em preparação um novo regime jurídico, em que este tipo de Plano Especial de Ordenamento será marginalizado por legislação nacional, deixando o Poder de mãos mais livres, como referia o arquitecto Manuel Tainha.

Oxalá me engane, mas é certamente a fórmula para acabar com as “confusões e mal entendidos” geradores de mau estar do Poder causados pelos “Portucale’s” e “Freeport’s, e que nesta prossecução do mal a muito pior, muito provavelmente irá vingar.

A Região opôs-se. Chegará para alterar alguma coisa?

Creio que não, quando o novo regime jurídico de avaliação de impacte ambiental, recentemente promulgado, vem já nesse sentido, ao alargar a malha do crivo de apreciação, evitando assim, que operações urbanísticas de dimensão apreciável deixem de ser sujeitas a essa avaliação; que o avaliador possa ser um particular; que a desconformidade da operação face ao Plano de Ordenamento deixe por si só, de constituir argumento de avaliação desfavorável.

Conhecíamos os truques, também cá aplicados, até mesmo em obra pública, de diminuição do volume do empreendimento como fuga à avaliação, mas a consagração do facilitismo pela legislação, não agoira nada bom de futuro.

Este quadro é bem ao nosso estilo, driblando a legislação, e aqui me vem à memória a ideia de um dos candidatos nas últimas autárquicas que se propunha facilitar a apreciação de projectos sujeitos a determinado regime regulamentar… Como? Onde? Todos? Ou só para alguns?

A implementação da incineração nos Açores com recurso a duas incineradoras, uma na ilha Terceira e a outra na de S. Miguel, faz parte do constante abandono dos planos, neste caso do Plano Estratégico de Gestão de Resíduos dos Açores, que na sua promulgação correspondia a “uma política de gestão de resíduos assente em princípios de racionalidade, eficácia e sustentabilidade financeira associados a um esforço de equidade social e de reconhecimento das especificidades insulares numa estratégia de desenvolvimento sustentável para a Região”.

Recentes notícias relativas à diminuição da produção de resíduos na Região recomendariam a implementação do Plano com recurso por ilha a centros de triagem e centros de valorização orgânica através da compostagem, à escala de cada ilha, como forma do seu cumprimento, em prejuízo das incineradoras exigentes e determinantes no aumento da produção dos resíduos, agora em retracção.

Mas o abandono do Plano permite as mãos livres para decidir ao sabor das conveniências e das oportunidades que a incineração configura.

Para instalação de equipamentos de comunicações da Marinha deu-se uma dentada na Reserva Agrícola Regional em Santana na Ribeira Grande, impermeabilizando uma área de solo agrícola de qualidade.

Não haveria outro local possível, que permitisse a preservação daquela área, quando assistimos a tanta construção abandonada?

Ainda se fala de reabilitação? Ou já passou à história?

Na Caloura um novo empreendimento turístico dá outra dentada, agora na Reserva Ecológica Regional.

Nada que não se tenha visto já, com um dos casos que anteriormente referi.

Que impacte ambiental terá na Caloura um espaço de feiras e congressos? E que precedente a dentada na Reserva Ecológica Regional não abrirá?

A chegada da nova legislação que enunciei, será bem-vinda para estes casos, porque permitirá mais facilmente de mãos livres os ataques à “natureza verde intocada” que fazemos passar como imagem dos Açores, mas que no futuro ditarão certamente o preço a pagar.