Arquitectura XXIV

(…)"Já vejo a Horta ao fundo da baía limitada por dois morros, o Monte Queimado numa extremidade e na outra o Monte da Espalamaca. É uma cidade de uma só rua, como eles dizem, a preto e cinzento."(…)

Raul Brandão, in “As ilhas desconhecidas”.

A cidade naquela época desenvolvida linearmente, no anfiteatro contido entre aqueles dois montes ainda apresentava o equilíbrio entre o construído, determinado pelo frágil sistema construtivo que os materiais endógenos permitiam (já então conhecidos, mas não por catálogo!), o território e o ambiente, aos quais se adaptava de forma sustentável.

Passados oitenta e tal anos, o desejável e imprescindível desenvolvimento objecto de intervenções pontuais, o mais das vezes desgarradas do contexto de inserção, corrompendo a continuidade, porque implantadas de forma autónoma, determinaram um conjunto de situações urbanas desarticuladas, sentidas sobretudo em toda a faixa marginal, carentes de reabilitação, de que a autarquia em boa hora se capacitou.

Para a implementação do processo de reabilitação de todo aquele tecido, a autarquia decidiu-se exemplarmente por um concurso público de ideias com prévia qualificação, cujos projectos  concorrentes foram objecto de exposição pública, com auscultação da população sob a forma de manifesto individual escrito.

Estava em causa a reabilitação da frente marginal contida entre o Monte Queimado e a Espalamaca, costurando sob a batuta dos Planos de Salvaguarda e de Ordenamento da Orla Costeira, cinco fragmentos urbanos localizados ao longo da marginal com o tecido antigo adjacente, aquele que à época de Raul Brandão constituía a única rua que de longe se avistava, como forma de eliminar as cicatrizes deixadas pelo encosto das novas estruturas que configuram os tais cinco momentos.

 Cinco momentos caracteristicamente muito diferentes, a costurar entre si e ao tecido antigo, tarefa que à partida não direi fácil, e que a meu ver exigia uma atitude, com certeza contemporânea actuante, de construir na continuidade, mas sem ruído, que respirasse silêncio, o que a maioria dos concorrentes não conseguiu, por não se conter e querer deixar cada um a sua marca o seu registo, um grito diferente, alguns quase em desespero.

O desrespeito pela escala daquele território e pelas preexistências significativas, a intromissão de formalismos gratuitos, ou até a utilização de máscaras como forma de adequação a uma contemporaneidade subvertendo épocas e autores, foram muitos dos gritos que ali ecoaram.

Mais preocupante, que o próprio júri não tenha ficado imune a alguns gritos.

De qualquer modo, o processo mantém o carácter exemplar de aprofundamento das ideias, que apesar da gritaria, deixou um conjunto de soluções capazes de reconduzir a frente Marginal da Horta, assim haja capacidade e perseverança de o levar por diante, corrigindo-o aqui ou acolá, eliminando ruídos, mas mantendo a determinação de uma reabilitação conduzida pela proposta vencedora, onde se reconhece pela sua extensão, a morosidade inerente à sua implementação, e onde não faltarão momentos de desanimo ou mesmo de desencorajamento vindos de aves agoirentas ou mesmo de rapina, mas exemplo singular que oxalá contagie outras autarquias, e porque não outras entidades, nele se revendo como meio de actuar sobre o edificado carente de reabilitação, invertendo modos casuísticos de o fazer.

Não acredito muito, porque a cultura política vigente não é esta.

Continuamos a falar de reabilitação, mas nada de implementá-la através de uma política abrangente.

Como seria diferente o Campo de São Francisco se tivesse sido objecto de um concurso de ideias, no âmbito do aprofundamento de um Plano de Salvaguarda da zona histórica?

Como seria o adro da igreja do Santo Cristo? E a manta de retalhos dos pavimentos? E o coreto? E as quatro flamejantes bocas de incêndio a balizar o Campo? E o estacionamento automóvel na envolvente? Que opinião expressaria um júri em vez de mandatários da Igreja?

Como resposta, adivinho alguma ou toda a indiferença, um encolher de ombros…Parece que não é connosco!

E agora já está, e consultados os “interessados”, todos concordaram…

O desmantelamento dos tanques da Bencom e a demolição de parte do edifício do Antigo Matadouro e construção do Entreposto Frigorifico, que estarão para breve, relançam o problema do reordenamento da faixa marginal de Santa Clara.

Os dois espaços vazios, de grandes dimensões que as demolições configuram, situam-se não só em lados opostos do eixo viário que se desenvolve da Relva ao Porto de Ponta Delgada, aí referenciado pelo Forte de S. Brás, como são razoavelmente distantes, mas ambos inseridos num tecido todo ele francamente desarticulado, onde eles, de novo vazios reforçam a chamada de atenção para a necessidade de reabilitação.

Esse tecido esfarrapado e carente de urgente intervenção é bem mais extenso, desenvolvendo-se desde as oficinas da JH Ornelas, a poente, até ao Forte de S. Brás, a nascente, em ambos os lados do eixo viário, contido transversalmente entre o mar e a zona histórica de Santa Clara.

Também aqui, como na Horta, não parece fácil cerzir este tecido que contem como elemento estruturante o eixo viário a pedir correcção de traçado para uma adequada articulação com as áreas envolventes; vazios a preencher; património a salvaguardar; a frente de mar a pedir desobstrução que até o mar recomenda; e sobretudo a conveniente articulação das diferentes entidades gestoras das várias parcelas em presença, requerendo entendimento, entrosamento, parcerias, e ideias sobre a Cidade, em detrimento de partidarites balofas.

Ao sabor das ocasiões vão surgindo diversas propostas que por conveniências diversas, não têm passado disso.

O Plano Director Municipal contempla o seu aprofundamento através de um Plano de Pormenor abrangente de quase toda a área anteriormente referida em que, para que não se criem quaisquer compromissos nunca se pensou, libertando-nos para o acaso; a Junta de Freguesia de Santa Clara dinamizou a discussão sobre aquele território de que todos gostámos muito, mas que não passou de gargarejos em mais uma noite de reflexão; na campanha para as últimas eleições autárquicas surgiu uma Planta da zona do Antigo Matadouro, e que não é mais do que isso, um panfleto para vender uma ideia avulsa justificativa da construção do novo Entreposto Frigorífico.

Para quando uma atitude séria? Infelizmente resultados deste estado de coisas abundam, criando cicatrizes no território, e todos estamos conscientes disso, sem que se vislumbre um novo modo de estar e fazer.

A crise não nos pode remeter ao marasmo se a queremos ultrapassar, e pelo tempo que nos confere é uma boa ocasião para repensar o território, porque a Cidade e a Arquitectura precisam de tempo.

Por isso recomendaria aqui o exemplo da Horta, como forma de costurar todo este tecido, deixando de continuar a desperdiçar oportunidades de repensar a Cidade, para que, parafraseando José Manuel Bolieiro “não avancem obras que possam comprometer gerações futuras”, e persistam na continuada desarticulação e abandono da Cidade, diria eu.