Arquitectura XXIX

“Participe por um concelho que é seu!”

Slogan da campanha promovida pela Câmara Municipal de Ponta Delgada relativa ao Orçamento Participativo de 2014. 

O Orçamento Participativo nasceu em 1989 na cidade de Porto Alegre no Brasil, e de então para cá a ideia contaminou cento e tal municípios brasileiros, atravessou fronteiras e continentes chegando finalmente em 2011 aos primeiros Concelhos que a ele aderiram em Portugal continental, nomeadamente Lisboa, Cascais, Odemira e Condeixa, em 2012 a Oeiras e agora em 2014 aos Açores a Ponta Delgada.

Num momento em que por via das maiorias autoritárias a democracia atrofiou, é uma lufada de ar fresco, ao permitir que a população em geral se debruce e participe na resolução directa de problemas urbanos que a afectam e a preocupam, propondo soluções e ideias que depois de tecnicamente analisadas e publicamente referendadas, passam a constituir projectos a implementar pelo município no ano consequente.

Contrariando e bem, atitudes anteriores de consultas restritas a entidades particulares sobre trechos da Cidade, a Câmara Municipal propõe-nos agora a participação colectiva no Concelho que é Nosso (!), ao que não vem sendo defraudada pela grande aderência e participação que vem registando nos Encontros de Participação que têm ocorrido por todo o Concelho.

O Orçamento Participativo não vai resolver os problemas urbanos do Concelho, nem para tal foi criado, e saiba-se lá desde 2005 com quantas animosidades contou a proposta, a que a Autarquia fez orelhas moucas e que só finalmente neste mandato pôs em prática, e que constitui um aprofundamento da democracia participativa, neste caso particular relativa a projectos urbanos.

No fundo a Autarquia ao delegar parte do seu Orçamento em favor de um “Quadro” regido por assembleias de cidadãos que numa participação cívica vêm propor projectos urbanos para o Concelho, ter-se-á sentido desconfortada ou talvez mesmo ultrapassada, por dele abrir mão, razão de tanta animosidade à proposta do Orçamento Participativo, e até talvez também por isso, com raras e honrosas excepções, os eleitos não aparecem, desconfiam, não participam, resguardam-se para outros voos, que isto de participação cívica em aprofundamento da democracia é coisa menor.

Pela primeira vez o cidadão comum toma consciência, estuda o tecido urbano que lhe é mais próximo, propõe soluções, discute-as e bate-se por elas com poder decisório num processo que não se esgota em cada encontro e que finalmente sente como seu.

Em cada encontro somam-se propostas das mais diversas áreas, umas mais estruturantes outras mais ligeiras, umas muito simples, outras mais complexas, mas todas válidas, fugindo ao processo casuístico a que temos assistido, porque apresentadas, defendidas e sufragadas, e também envolvidas por um processo didáctico que ditará frutos na abordagem cívica a que já assistimos e ao envolvimento e consciencialização nas soluções urbanas, em que estávamos virgens.

O Orçamento Participativo tem um limite de 100 mil euros por projecto, num universo anual de 300 mil, não podendo por isso resolver grandes problemas nem tão pouco cometer grandes erros, o que só por si é uma grande virtude do programa (ou lá participariam de pronto as aves de rapina!), mas para além da abordagem do meio urbano, da reflexão em torno dele e da participação democrática, permite ao Município, nesta auscultação, encaixar uma saca de ideias, algumas bem meritórias que poderá e deverá, ouvindo os proponentes, reflectir e pôr em prática quando entender conveniente.

Salvaguardando as devidas proporções e distanciamento que o tempo ditou, o programa revela pontos de contacto com o de 1974, que criou o Serviço de Apoio Ambulatório Local, normalmente designado pela sua sigla SAAL, permitiu e garantiu um espaço de mobilização, então de moradores, na condução dos programas de habitação que lhes diziam respeito, fornecendo-lhes apoio técnico gratuito garantidor de projectos adaptados àquelas comunidades e àqueles sítios.

Agora o programa é para todos nós, assim o abracemos e queiramos e saibamos pensar a Cidade; os meios não são, nem pouco mais ou menos os mesmos, com prejuízo dos valores atribuídos ao Orçamento Participativo, mas vantajosamente impeditivos de disparates, que o SAAL os terá tido certamente; e agora o âmbito é muito mais alargado, não se confinando à habitação.

O SAAL conseguiu uma projecção internacional que o processo, por original, lhe conferiu e que os arquitectos souberam e puderam aproveitar, e que sobretudo alterou a dinâmica das relações entre moradores e a administração local e central.

O Orçamento Participativo é bem mais modesto e os tempos já são outros, mas a abertura de que o seu âmbito dispõe, reforça desde logo à partida a dinâmica daquelas relações institucionais, facilmente perceptível pelo salutar desenvolvimento dos Encontros de Participação, onde um grupo significativo de técnicos camarários, em regime de voluntariado, apagam definitivamente o carisma do “manga-de-alpaca” que tão bem souberam investir até há bem pouco tempo.

O Orçamento Participativo, ao contrário do SAAL em 1974, não é inovador e por isso o seu êxito, que forçosamente terá pelos valores que encerra, restringir-se-á ao Concelho e talvez à Região se outros concelhos se souberem salutarmente deixar contaminar, ao invés da promoção de bairrismos estéreis, porque sempre valeu a pena abraçar boas ideias.

Mas a sua sedimentação, que só ocorrerá com a prática recorrente do programa, a que corresponderá certamente um maior amadurecimento das ideias propostas, tendencialmente mais estruturantes, alicerçadas então em valores orçamentais mais significativos, deverá simultaneamente promover obras significativas, que não no seu valor de custo, mas no seu real significado arquitectónico e urbano, sem derrapagens, em abono de um Concelho mais estruturado nos seus valores urbanos, culturalmente melhor preparado, democraticamente mais empenhado, e consequentemente capaz de impedir desvarios como alguns que tão bem conhecemos, que só a pressa, o desconhecimento dos valores urbanos e a ausência de um crivo democrático promoveram.