Chegou ao fim uma das épocas do ano mais apreciadas pelos açorianos: o carnaval. Como se não bastasse o Entrudo, faz-se questão de ir criando expectativas com as festas anteriores, como o dia das amigas, ora não fosse o melhor da festa esperar por ela. Por todas as ilhas encontramos as suas especificidades, umas que valorizam mais, outras menos. Talvez as celebrações mais icónicas sejam as da ilha mãe deste jornal. Não obstante, abordarei a questão a partir da minha ilha, Santa Maria, para evitar cometer erros por ignorância.
Carnaval que é Carnaval em Santa Maria tem danças. São elas das Casas de Povo, entidades,… o que importa é que temos um grupo de pessoas vestidas tematicamente que ensaiam uma coreografia e canta acompanhados de música (por vezes, ao vivo). Por vezes as músicas são covers, outras originais, mas a letra é sempre invenção do grupo da dança. É uma letra satírica, que alude sempre à famosa mensagem do «é Carnaval, ninguém leva a mal», nem que seja no fim, na despedida. Há grupos que optam por já passar certas mensagens através da música, outros preferem fixar um refrão que vai sendo interrompido sempre que alguém da dança avança para declarar, normalmente, uma quadra. Um curiosidade interessante é serem justamente as quadras, através de uma rima cruzada, as mais habituais para se contruírem o portefólio humorístico. Desde parágrafo se nota que as danças são semelhantes na sua estrutura, diferindo na temática e alguns aspetos práticos. Claro que no que concerne ao material satírico não é raro algumas sobreposições, mas já lá vamos.
Além das danças, costuma haver algumas «brincadeiras», como são chamadas. Trata-se de peças de teatro cómicas concebidas no seio de um grupo de amigos e que acabam por ver a luz do dia. Muitas vezes são utilizados assessórios que exigiram muito tempo e dedicação (as danças, por vezes, também adotam isso, como enfeitar carros). Uma das brincadeiras deste ano tinha uma nave espacial que devia medir pelo menos três metros, por exemplo. Além de outros acessórios mais modestos, mas também trabalhosos.
Existe efetivamente um valor cultural e de entretenimento associado ao Carnaval, que se torna, por um lado, no reflexo artístico do senso comum e, por outro lado, uma altura em que as pessoas parecem ter o direito a rir. É um clima de alegria, de um espírito coletivo, quando mais não seja, pela compreensão transversal das piadas e anedotas que foram sendo ditas e feitas.
Existe, aliás, um outro aspeto que me fascina particularmente no Carnaval: à noite deitarmo-nos e ficarmos a remoer no que foi dito, tentando perceber a fronteira entre a sátira e a realidade. Há um espírito crítico e reflexivo que surge nesta altura e se esconde no resto do ano. Apesar de que com gargalhadas, coloca-se em praça pública os principais anseios de um povo. Parece-me uma imagem realmente poderosa.
Cabe, portanto, a quem governa perceber duas coisas: é uma honra ser mencionado e é imperioso atuar sobre o assunto. Para alguém publicamente estar à vontade para mencionar x ou y, mesmo que nesse contexto, é preciso considerar-se próximo desse x ou y, e, para, pelo menos, a maioria da população entender a referência, tem de ser considerado alguém com importância. Por outro lado, é importante sabermos rir de nós, percebermos onde provavelmente estamos certos e errados, estando sempre abertos para ouvir quem está a ser representado. O Carnaval é a altura ideal.
É mesmo real, a rir e a brincar se pode dizer a verdade.