A urgência de destruir uma ideia perigosa

Recusar a austeridade é imperativo e urgente. A "ideia perigosa", como Mark Blyth a classificou no seu livro recentemente editado em Portugal "Austeridade - a história de uma ideia perigosa", tornou-se, para muita gente, senso comum. A austeridade é uma espécie de modelo geocêntrico defendido como um dogma, apesar de todas as evidências que o refutam. Cortar quando estamos em baixo, para que miraculosamente a confiança regresse e o investimento flua dos bolsos dos capitalistas é uma receita que, enquanto se mantiver alojada nas mentes dos portugueses e dos povos da Europa como a única saída para crise, tornará difícil o derrube dos governos que a aplicam com cada vez mais afinco apesar de preconizarem "novos ciclos" de "crescimento económico". Ora, há duas formas de trazer a maioria das consciências para o lado de cá da barricada, lado este que defende que não devem ser os salários, as pensões, o desemprego e a pobreza a pagar as consequências da crise: apresentar uma alternativa que se preveja mais eficaz e menos dolorosa que a seguida até aqui ou deixar a realidade destruir a austeridade enquanto saída para a crise, deixando um rasto de inevitável desastre social e económico. Como é fácil de perceber pelas várias histórias da austeridade nos países da periferia da Europa, e em Portugal particularmente, é a segunda hipótese que ainda prevalece, para nosso mal.

Mas ainda assim, tendo em conta os resultados desastrosos da austeridade até aqui, seria de esperar que a percepção de que esta é uma política falhada, que apoiar a austeridade é um suicídio colectivo, avançasse mais rapidamente. Na minha opinião, alguns factores têm contribuído para uma resistência à constatação da óbvia falência da austeridade enquanto política benéfica a curto, médio e longo prazo para a vasta maioria dos portugueses: 1 - a aura de penitência e inevitabilidade com que estas políticas foram durante anos preparadas, 2 - a divisão das classes baixas e médias da sociedade que levou a uma falta de solidariedade gritante e 3 - o escasso debate em torno das alternativas à austeridade.

1 - Esta é talvez a mais infame e improvável das vitórias dos últimos anos da Direita e da elite financeira e económica, que verdadeiramente nos governa. Em poucos anos conseguiram tornar a crise financeira de 2008 (que mais tarde migrou para a Europa), criada de fio a pavio pela ganância do sector financeiro que se julgou infalível e que teria, para sempre, lucros imensos e ilimitadados, numa flagelação da restante população. Alguma desta população veio mesmo a crer que realmente tinha esbanjado o dinheiro que não tinha. Esqueceram-se os penitentes que, na sacrossanta economia de mercado, o consumo do vizinho era o meu salário e o meu emprego e vice-versa. Aos poucos esta narrativa esvaziou-se com o aprofundar da austeridade e da crise e com a constatação de que não há moral nestes cortes que criam mais desigualdade, pobreza e que deixam os intocáveis imunes, como sempre. Mas, nos primeiros anos do governo Passos/Portas esta foi uma tese tremendamente importante para que as políticas destrutivas do "ajustamento" fossem toleradas, juntamente com o discurso de ausência de alternativas que se apoiou no ponto 3.

2 - A falta de solidariedade (não confundir com caridade) que se sente na sociedade portuguesa é preocupante e dificulta muito a unidade que é essencial para o derrube do governo e, principalmente, para o desmantelamento da ideia de austeridade como saída para a crise. O seu a seu dono, Paulo Portas e a sua gente indecente do CDS, que preferem as filas da sopa dos pobres a dar o mínimo de dignidade a quem nada tem, contribuíram decisivamente para abrir no país um fosso de preconceito para com os beneficiários de do Rendimento Social de Inserção, pintando-os todos como preguiçosos que apenas precisam de um incentivo, a fome, para irem trabalhar. As desigualdades criadas pelos sucessivos governos e pelo “mercado de trabalho” cada vez mais liberalizado (e permitidas por um largo espectro da sociedade, mais largo do que espectável) criaram fracturas entre trabalhadores, por estes constatarem que não estavam todos no mesmo barco. Reconstruir a solidariedade perdida e reforçá-la entre cada vez mais sectores da sociedade, que, embora diferentes, encontram com toda a certeza mais pontos de união do que discordância na luta contra a austeridade permanente, é uma pedra essencial na consolidação de alternativas.

3 - Durante vários anos o espaço de debate para políticas alternativas aos PECS, ao memorando de entendimento com FMI/BCE/CE, ou seja, à austeridade, foi muito diminuto na sociedade portuguesa, passando principalmente por uma oposição reactiva a uma ofensiva austeritária imparável por parte dos governos PS e PSD/CDS. Não é alheio a esse facto o claro consenso entre estes três partidos em relação ao que "é preciso fazer" para corrigir o défice e a dívida pública, classificando quem pensa de forma diferente como "radicais" e as suas propostas como "irresponsáveis". O discurso e a teoria TINA (There is No Alternative) é ainda dominante. Com o agudizar da crise e com o desmoronar da austeridade enquanto caminho para sair do poço onde caímos, a realidade começa a impor-se e a discussão de alternativas não é agora apenas uma necessidade, é inevitável.

A realidade destrói a cada dia a austeridade como política viável e benéfica para o país e, como tal, não pode ser implementada em democracia, pois não é possível a nenhum governo governar contra o seu povo durante muito tempo. No entanto, não podemos esperar que a alternância da nossa democracia seja o motor de uma mudança de política: os partidos do "arco do poder" são dominados pela elite económica e financeira que impõe a austeridade e encontram-se profundamente comprometidos com esta política, como os dois últimos governos claramente o demonstraram. Só uma mudança de fundo que conte com amplo apoio social, em Portugal e nos países mais flagelados pelas políticas de austeridade permanente, se conseguirá força social suficiente para um governo que rejeite a austeridade. Dadas as consequências actuais e futuras (que serão muito mais graves) das políticas seguidas por vários governos na Europa, não podemos deixar que seja a falência da austeridade a destruir-se a si própria. Temos de ser nós, enquanto povo, a parar quem teima em usar o seu próprio país como carne para canhão ao serviço do capitalismo.