“O Homem do futuro, que está a nascer, vai juntar a Cidade e o Campo”
Gonçalo Ribeiro Telles, arquitecto paisagista, in “Em nome da Terra”.
Gonçalo Ribeiro Telles é um homem da terra, do interior, que viveu sempre essa dicotomia Cidade /Campo tão sentida nas grandes cidades como Lisboa, porque se fosse ilhéu acrescentaria o Mar, e diria:
- Vai juntar a Cidade, o Campo e o Mar.
Como imagem retenho um filme sobre os baleeiros do Pico, em que esta trilogia era bem forte, e hoje tão frágil.
A ligação forte imposta pela mobilidade como condutora do desenvolvimento do meio urbano passou a fazer-se por grandes eixos viários que interligam aglomerados, retalhando à faca o Campo com absoluto desprezo pela Paisagem.
É assim com as grandes vias, com as auto-estradas, e foi assim com a via rápida que se inicia na Relva e que por sul vai até à Vila Franca, e que pelo norte vai até ao Nordeste.
Longe vai o tempo em que as estradas abraçavam o chão e com ele rastejavam, quando então a tecnologia, os custos e a pouca pressa assim determinavam, em abono da Paisagem.
Hoje são pensadas unicamente para um elevado número de viaturas, que as deverão atravessar a uma velocidade grande, sob pena de não cumprirem com os necessários e justificativos estudos económicos!
E nesta tal de correr, alinham-se a direito, cortando ou enchendo, esventrando ou criando elevações onde não as havia, saltando grotas.
Se quando é talhada em escavação a sua adaptação ao terreno é relativamente mais pacífica, ou talvez não tão gritante, ficando mais disfarçada, quando o é em aterro, criando bossas ao existente, normalmente deixa enormes dissonâncias na Paisagem.
Como no nosso corpo, o corte cicatriza depressa, fica imperceptível, enquanto o quisto é sempre mais visível!
A envolvência Cidade/Campo não se revê nestes eixos.
A envolvente a Ponta Delgada infelizmente, é disto um exemplo, que a desenfreada expansão urbana mais acentuou, deixando evidentes cicatrizes, que a crise melhor expôs.
As cicatrizes são faixas laterais, terreno de “ninguém”, onde se amontoa lixo, se distribuem ruínas urbanas, ou em casos menos maus, urbanizações com o seu espaço público mutilado, que piscam o olho à via rápida, e esta num aceno permanente lhes devolve poluição de todo o tipo.
E se a sul a ligação viária da Relva ao Pópulo, ainda que a medo se começa a articular como um Corredor Verde, porque o terreno, a paisagem e o peso da malha urbana, lhe são mais favoráveis, já a norte é o abandono.
A sul o Corredor Verde onde existe promove o recreio de ar livre, cerzindo o urbano, o campo e o mar.
É quase assim da Relva ao Pópulo, onde pequenas ligações por fazer não permitem a desejável continuidade, uma verdadeira requalificação possível que se iniciaria no Parqueamento da Rocha da Relva e terminaria no Pópulo.
Para isso estão por estabelecer ou completar os troços:
-Da Rocha da Relva ao limite nascente litoral da Relva, a via existe, iniciando-se entre campos, serpenteia com o mar à vista e entronca na rua litoral do aglomerado, carecendo de pequenas correcções de pavimento, arborização e eventual sinalização e iluminação protectoras do peão e do ciclista.
-Dos depósitos da “BP” ao Forte de S. Brás é o troço mais carente de intervenção.
Se toda a frente de Santa Clara precisa de desobstrução, que o mar também recomenda pela erosão que aí vem causando, o troço de confluência com o porto, carece de entendimento entre todas as entidades cujas gestões de território aí confluem de modo a harmonizá-la e a devolvê-la à Cidade.
Aliás, este aspecto, julgo ter constituído programa eleitoral, caído no esquecimento possivelmente pela confrontação que a sua resolução exige, mas que o ambiente de segregação política não recomenda, em detrimento de uma conjugação de esforços que a Cidade agradecia, porque afinal a cidade somos todos nós.
Acreditemos que a intervenção na área mais a poente, determinada pela resolução da posse do Antigo Matadouro, agora, segundo promessa, nas mãos da Junta de Freguesia de Santa Clara, contamine todo este troço e consiga remover os tanques da Bencom, cuja saída continua adiada.
-Do Clube Naval à Moaçor, a via que na versão anterior, era uma via ainda fora do contexto urbano, uma via rápida de acesso à cidade, ao estar hoje nela inserida, constitui agora uma zona em “sombra”.
O passeio que passado o Clube Naval, significativamente estreita e perde iluminação, manteve as características de via rápida, que deverá perder, se a iluminação se reforçar, se o seu desenho de suporte se adequar, e se o alargamento do passeio sobre o mar contemplar reconhecida dimensão libertando o actual para ciclovia, numa harmonização possível e congruente com as soluções de espaço publico em que se intercala, ao invés da ruptura que constitui.
-Do bairro do Terreiro ao Largo da Boca da Furna, a marginal interrompe para não tocar no território sensível do biótopo do Rosto de Cão. No entanto sobre ele e a partir daquele Largo existe um passadiço degradado que dá acesso às casamatas construídas no tempo da guerra, percorrido diariamente por turistas curiosos destas descobertas da história, do ambiente e da paisagem.
Pareceria fácil, no respeito pelos diversos valores em presença, a requalificação do percurso e das casamatas ligando-o em ponte ao Bairro do Terreiro, à semelhança do passadiço do troço anterior, e que afinal melhor dignificaria o local, porque o abandono apenas degrada o ambiente. Se é possível contidamente construir no respeito pelo ambiente, na Ferraria, nas Furnas, nas Sete Cidades, ou no Ilhéu de Vila Franca, também aqui o será.
-Do Largo da Boca da Furna ao último troço da marginal, esta voltou a ser interrompida, agora numa extensão de cerca de cem metros, eventualmente ainda reflexo do assustador biótopo e ainda provavelmente por obrigar a protecção marítima, onde apenas se estabeleceria a via pedonal e ciclovia, aliás tal como na zona do Forno da Cal, e por isso razões pouco consistentes para o efeito anulador da continuidade desejável.
Por razões diversas não se tem querido ou sabido estabelecer este Corredor que costurando o Campo, a Cidade e o Mar daria outra dimensão na indispensável requalificação urbana e ambiental da Cidade, como tantas outras o vêm fazendo, tantas vezes em condições bem mais adversas que a nossa.
A norte, como referi, a situação é contudo bem diferente, mas para muito pior.
A via rápida cortou linearmente o território, acentuando descontinuidades, abrindo vazios que não constituem espaço público, e por isso estão por tratar, e que a crise melhor veio expor, deixando-os ao total abandono.
A criação de um Corredor Verde ao longo do desenvolvimento desta circular, que interligasse nas suas pontas ao Corredor Verde Sul, já descrito, ligaria toda a periferia, permitindo uma estrutura ecológica verde envolvente da Cidade, que costuraria as diversas franjas confinantes com a via de cintura, permitindo simultaneamente percursos alternativos mais alicerçados na natureza, dando sentido àquelas faixas.
Com ligação ao Corredor Verde Sul pela Avenida Príncipe do Mónaco, iniciar-se-ia na rotunda norte daquela avenida, seguiria a faixa a sul da via rápida até ao Paim, que atravessaria, seguindo os arruamentos já existentes sem tráfego no Lajedo até ao limite sul do hospital, onde até a passagem aérea garante a travessia para os arruamentos envolventes da Decathlon por norte, seguindo para norte na rua Dr. Carlos Alberto Oliveira até retomar a faixa a sul da via rápida até ao Caminho da Levada, onde sobre esta atravessando-a entroncaria na faixa a norte da via rápida circundante ao Parque Urbano e que nas torres do Loreto atravessaria para sul para a canada que a nascente confina com o Mac Donald’s e a bomba de gasolina, entroncando na Estrada Velha da Ribeira Grande que na Pranchinha encontra na Moaçor o Corredor Verde Sul, fechando o anel.
O estabelecimento deste enorme anel arborizado, articulado com hortas comunitárias, onde os vazios deixados o recomendassem, mesmo que “provisórias”, enquanto a especulação por via da crise o permita, e que não será por tão pouco tempo, garantindo tempo ao projecto, seria uma excelente reabilitação daqueles espaços, numa junção da Cidade do Campo e do Mar, que garantiria alimentar, respirar e passear, como Gonçalo Ribeiro Telles refere e a Agenda 21, enquanto projecto nacional preconiza na procura da protecção do ambiente, do desenvolvimento local e da coesão social.
É tempo de começar a fazer diferente.
Deixemos de importar inadequados modelos para Ponta Delgada e procuremos projectos à dimensão e fragilidade do território em que nos revemos, capazes de juntar a Cidade, o Campo e o Mar.