Arquitectura XVIII

 

…“Como subtrair os artefactos urbanos ao ciclo infernal de mercadorias a que estão submetidos, não por serem produzidos pela indústria, mas por o serem no interior de um sistema onde o imperativo do lucro e do privilégio agora “democratizado” conduzem à distorção da estrutura das necessidades, criando inclusive necessidades fictícias tidas por “inadiáveis”?”…

Manuel Tainha, arquitecto in ”Projecto ou Destino - Textos de Arquitectura”.

 

Neste texto Manuel Tainha aborda como a mundialização política e económica converteu o planeamento urbano numa aberração, transformando entre tantos casos, o da Calheta de Pêro de Teive num paradigma do desarme ideológico em prol da religião do mercado, onde a responsabilidade do arquitecto na construção do meio urbano se dilui.

Perdeu-se a componente social do Projecto, e entrou-se no deslumbramento, numa feira de vaidades que os próprios arquitectos aproveitaram.

A Calheta é bem um reflexo de tudo isto, da subversão total de valores em favor de um não sei quantos negócios, cujo resultado ainda está por apurar, mas que é certamente, demasiado negativo para a Cidade.

As diferentes decisões que ao longo dos vinte e poucos anos do aterro da Baía lhe vão sendo impostas, porque não estudadas, vieram sempre num crescendo do abandono de soluções de desenho urbano para a pouco e pouco se conformarem como uma adjectivação de necessidades fictícias.

Convém sempre recordar os diferentes episódios da sua história, para que os mais distraídos ou esquecidos possam verificar este percurso de irresponsabilidade que num crescendo acabou com a memória do sítio em que a grande maioria dos residentes de Ponta Delgada ainda se revê.

A primeira etapa, no inicio dos anos 90 do século passado, vence-se imediatamente à conclusão da Marina com a apresentação de um Estudo Prévio que contemplava na Baía aterrada apenas o Estacionamento Coberto, uma Praça superior equipada com pequenas Estruturas de Comércio e Restauração que mantinham o anfiteatro sobre a marina e a visualização total do cenário da Rua Eng.º José Cordeiro, solução que então a Câmara Municipal por oposição ao Governo rejeitou.

A segunda, em meados dos anos 90, reporta-se ao Concurso de Concepção, Construção e Concessão para implantação de uma unidade hoteleira, que se localizaria nos terrenos onde hoje se encontra o Hotel Marina Açores, deixando de fora a “Baía”, o que logo aqui deixava perceber que a preocupação se centrava na criação de unidades hoteleiras deixando a Cidade para segundo plano. A Secretaria Regional anularia o concurso.

A terceira etapa, da autoria da mesma Secretaria, ocorreu logo de seguida, desta feita sob a forma de Concurso de Ideias, revendo o Programa, ampliando o objecto e a área de intervenção, resgatando o espaço da “Baía” para o programa de turismo que se ia implementar, compreendendo a maior valia que a Calheta constituía para aquele programa e para aquela zona da Cidade, permitindo assim uma acção integrada de todo aquele espaço. Como Programa propunha 2 Hotéis, Espaço Público e quaisquer Estruturas complementares de apoio. O Programa tinha substancialmente aumentado, mas permitia um estudo integrado, deixando adivinhar que houve então uma qualquer assessoria em planeamento urbano. O concurso foi também anulado, morrendo aqui e enterrado bem fundo o planeamento urbano para a zona.

Na sequência da anulação do concurso e no abandono das ideias de planeamento urbano, constrói-se de pronto o primeiro hotel, à semelhança do preconizado pelo segundo classificado naquele concurso, truncando a zona e iniciando-se a manta de retalhos que infelizmente bem conhecemos.

A quarta etapa é de 1999, correspondente à publicação do Decreto Legislativo Regional que entre várias obrigações para a concessão do exclusivo da exploração de jogos de fortuna e azar (o nosso!) retoma o espaço vazio que o Concurso de Ideias deixara órfão ao construir o Hotel Marina. A concessão, de entre aquelas obrigações impunha para a zona urbana da Calheta, a Urbanização do aterro da “Baía”, segundo Programa demasiado vago, como aliás convinha. As áreas de construção e volumes permitidos aumentam substancialmente, tendo por objecto ocupações na área do lazer e da cultura. Como adoçante, a possibilidade de um Espaço Verde, como se tal fosse razoável sobre o Parqueamento subterrâneo imposto. As restantes obrigações implicavam entre outras, um Hotel e Infra-estruturas para o Casino, e Salas de Jogo noutras ilhas, sem qualquer reflexo para o que aqui importa.

Em 2002, é adjudicada a Concessão, que implicava o início de actividades num prazo de três anos. Mas como tudo, teve as suas respectivas derrapagens…

Em 2006, ultrapassado o prazo de inicio do funcionamento das actividades que a concessão impunha, portanto estando aparentemente já em incumprimento, é promulgada a revisão do Plano Director Municipal de Ponta Delgada, que em artigo único relativo à Calheta, razoavelmente vago, volta a sobrecarregar as áreas e volumes anteriormente estabelecidos no Decreto Legislativo, desta feita para mais do dobro, para lazer, cultura, turismo e comércio, na salvaguarda da “desobstrução visual numa parte significativa da frente entre a marginal e a Rua Eng.º José Cordeiro”. Aqui a Câmara Municipal, em favor certamente de qualquer contrapartida, porque outra razão não se lhe adivinha, apadrinha descaradamente o empreendimento que hoje ali se implanta, revestindo-o da legalidade de que carecia, manobrada pelo Governo em exercício de forças combinadas com os promitentes concessionários.

A Câmara Municipal, que inicialmente se opusera a qualquer ocupação do Espaço Público da Calheta, invocando então, ainda que descabidamente, a obstrução do cenário que a Rua Eng.º José Cordeiro constitui, passou desta feita à sua aprovação, favorecendo intenções obscuras em detrimento de uma criteriosa e planeada gestão do urbanismo da Cidade.

Caía, sem qualquer manifestação de pudor, toda e qualquer preocupação que nos anos 90 tenha existido relativamente ao território, e que neste caso particular se manifestou de forma mais expressiva, também por mais visível, na Calheta.

Por falência, desentendimento entre as empresas promitentes concessionárias, o Governo vem intermediando o negócio, injectando, sempre atento, como tantas vezes refere, mas não actuante, para um processo que tem agora mais de 8 anos de derrapagens sucessivas cujas razões não se conhecem e não se deixam conhecer, e que a alçada dos tribunais remeterá por tempo indeterminado.

A derrapagem usando como combustível dinheiros públicos, tendo como palco o espaço público, como piloto o Governo, e como pendura a Câmara, beneficiando apenas os mecânicos privados, gerou este enorme desastre, onde nem pela má qualidade dos destroços deixados, se conseguirá um qualquer sucateiro interessado em recolhê-los.

Haverá coragem para removê-los, resgatando o Espaço Público como se impõe?   

Parafraseando o arquitecto Manuel Tainha:

- Como subtrair a Calheta ao imperativo do lucro e do privilégio?